domingo, 11 de setembro de 2011

"NETI, NETI" por C. Jinarajadasa

Existe uma palavra sânscrita que é reconhecida como sintetizando o mais elevado ensinamento das sábios hindus.  É Brahman, que significa Existência Una, cujas únicas características cognoscíveis para nós são sat, chit e amanda — existência, inteligência e bem-aventurança.  Ao  “conhecedor de Brahman”  o mistério da existência está resolvido; não há dualidade de Deus e Não-Deus, do bom e do mau, do prazer e da dor, do alto e do baixo.  Raça e religião, cultura e casta são para ele apenas rótulos que falsificam o fato fundamental de que existe em tudo uma Vida Una indivisível — "o Um sem segundo". O sábio aceita cada forma de vida como a Vida Una, inescrutável e inspiradora.  Essa compreensão de Brahman é tão poderosa e tudo transforma, que era dito antigamente: "e fores contar isto a um galho seco ele irá lançar folhas e flores!"

A verdade no tocante à unidade de toda vida não é, naturalmente, a descoberta apenas dos sábios hindus.  Toda escola filosófica que existiu, desde a Atlântida aos dias modernos, afirmou essa grande verdade de uma ou de outra forma. As formas necessariamente variam.  A concepção platônica do Ser, com seus atributos do bom, do verdadeiro e do belo, é uma forma, enquanto que os filósofos cristãos com seu ensinamento sobre a transcendência e a imanência de Deus dão outra.  Uma outra forma fascinante, também, é a de Lao-Tzu, com o seu ensinamento concernente ao Tao, o "Caminho" .

Porém existe uma ssegunda palavra na filosofia huindu que é menos conhecida que  Brahman, e que expressa uma verdade não proclamada por outras filosofias.  Essa palavra é Neti, que na realidade é composta de duas  palavras sânscritas  na - iti — “ não assim”. Mas a palavra Neti é usada na filosofia hindu em uma concepção estupenda, que é o clímax da realização dos sábios hindus.

Colocando de maneira suscinta, Neti significa que, qualquer que seja a asserção que vocês fizerem concernente à natureza de Deus, a Realidade Suprema, e que por mais inspirada tenha sido a sua proclamação, ela não é a verdade.  Pois o que quer que seja proclamado sobre a natureza dessa Realidade, não é a verdade a ela concernente.  Para tornar o pensamento mais preciso, suponhamos que um Grande deva tenha vindo e dito que conhecia Deus, descrevendo os seus atributos.  O sábio hindu aspirando à verdade dirá simplesmente "Neti , Neti" — "não assim" , "não assim" , significando que por nenhum atributo fenomenal poderá a Realidade ser conhecida.  O sábio iria ainda mais longe ao dizer "Neti , Neti" , mesmo se o Senhor  Supremo, o próprio Ishwara , permanecesse diante dele como o revelador da Realidade.  Pois nada corporificado poderá revelar a Realidade; por nenhum termo do manifestado pode o imanifesto ser conhecido. É, portanto, um axioma que o que quer que seja  experienciado é apenas a realização  de algum atributo da Realidade, mas não a própria Realidade.

Para cada experiência, embora espiritual e transcedente, o sábio deve dizer "Neti , Neti".  Onde irá terminar  a sua busca da Realidade ele não sabe, mas à medida que se eleva de plano em plano, e parece  chegar cada vez mais perto  do Centro, ele  deverá sempre dizer  a cada plano "Neti , Neti". Pois, enquanto existir  algo externo a observar, o que ele observa não pode ser a Realidade.

Essa intransigência do sábio hindu é estranha  à filosofia ocidental.  O que o ocidente atingiu de mais elevado foi, indubitavelmente, a maravilhosa concepção de Platão, que ele coloca nos lábios de Diotima, a profetisa que instruiu Sócrates em relação à natureza do Um.

"Convém que aquele que quiser ir por um reto caminho até a meta, comece desde jovem a se dirigir aos corpos belos, amar primeiro um só corpo e criar belos discursos; compreender depois que a beleza que reside em qualquer corpo é irmã da que reside no outro, e que se o que se deve perseguir é a beleza da forma, é grande insensatez não considerar que é uma só e idêntica coisa a beleza que há em todos os corpos belos e acalmar esse apego veemente a um único, despregando-o e considerando de pouca monta.

Depois disso, ter por mais valiosa a beleza das almas que a dos corpos, de tal modo  que se alguém tiver uma bela alma, ainda que seu corpo seja pouco gracioso, basta isso para amá-lo, mostrar-se  solícito, criar e buscar palavras tais que possam tornar melhores os jovens, a fim de ser obrigado novamente a contemplar a beleza que há nas normas de conduta e nas leis, e a perceber que tudo isso está unido por parentesco a si mesmo, para considerar assim que a beleza do corpo é de escassa importância.

Depois das normas de conduta  ele será levado às ciências, para que  veja também a beleza das ciências, dirija o seu olhar a toda essa beleza, que é muita, e não veja, a seguir, um homem vil  e de espírito mesquinho, servindo à beleza que reside em um só ser, ou em uma norma de conduta, mas que volte o seu olhar para esse imenso oceano de beleza e, sua contemplação faça-o criar muitos belos e magnifícos discursos e pensamentos  de inesgotável filosofia, até que, robustecido e elevado por ela, vislumbre uma ciência única, a ciência única, a ciência da beleza infinita.

Pois aquele que até aqui tem sido educado na inteligência do amor, e contemplou nessa ordem e na devida forma as coisas belas, dirigindo-se para o grau supremo de iniciação no amor, aquirirá de repente a visão de um SER maravilhosamente belo; aquilo precisamente por cuja causa tiveram lugar todas as fadigas anteriores, o UM que existe sempre, não nasce nem morre, não cresce nem decresce, não tem mudança, nem desvio, nem alteração.  Nem se lhe representará a beleza como um rosto, nem como mãos, nem outra coisa corporal, nem como um raciocínio, nem como um conhecimento, nem residindo em outra coisa que não ela mesma; nem no animal, nem no homem, nem na terra, nem no céu, nem em qualquer outra criatura; mas a própria Beleza em si, sozinha, única, separada e eterna, a Beleza da qual participam todas as coisas belas de uma maneira tal, que ainda que nasçam e morram, não a aumenta em nada, nem a diminui, nem sofre  variação alguma em absoluto.  E aquele que  sendo conduzido e elevando-se pelos amores humanos começa a ver essa Beleza, ele não está longe, digo eu, de atingir o fim de tudo.” (*)

Nessas palavras magníficas de Platão temos o mesmo ensinamento dos Upanishads.  Revelando o Um com os atributos do Deus Pessoal, o Shvetashvatara Upanishad canta:

“Podemos conhecê-lo o Senhor  supremo dos senhores, do deus supremo dos deuses, o rei dos reis, supremo do supremo, senhor do universo, o Deus a ser adorado.

Chegas a ser mulher e homem e jovem e donzela; e na velhice com o bastão hão de apoiar teus passos; tu nasces com rosto em todas os lados. 

És o inseto azul, o pássaro verde, o animal de olhos vermelhos, a nuvem que carrega o raio em seu útero, as estações e as marés, és sem princípio.  No poder onipresente tens teu lar, de onde nasceram todos os mundos ."

O sábio hindu curva-se em reverência diante da borboleta azul e do pássaro verde, diante da pedra e do cachorro, e sussurra para si ‘Brahmam’ !  Mas prontamente, pelo efeito nele dessa gloriosa verdade, ele murmura: "Neti , Neti" , e passa adiante.

O ensinamento de "Neti" será então uma negação de que a verdade poderá ser encontrada?  Poderá o coração do homem nunca chegar ao repouso?  Não é o que o ensinamento diz.  Os sábios prometem repouso — o repouso eterno.  Mas eles nos avisam contra o pensamento de que o repouso é onde existe o Deus Pessoal. A Índia não seria a Índia se ela parasse na concepção, embora elevada de um Deus Pessoal. Daí porque o Vedanta proclama que Ishwara, o Deus Pessoal de um universo criado, é apenas uma emanação.  Por trás dele existe o Absoluto do qual emanou.  Daí também porque o Budismo ignora completamente o problema da natureza de Deus.  O pensamento hindu sempre paira no empíreo, dá ele parecer aos místicos acidentais movendo-se em um frio nada, onde a alma é congelada na inconsciência.  Todavia, a maior contribuição da Índia ao desenvolvimento espiritual do mundo é "Neti , Neti"“ — "não assim, não assim".

"Neti" é um dizer árduo, mas é o único cajado que o peregrino encontra para se apoiar até o final. "Net" é o que a vida lhe ensina. Mulher e filhas, honra e fama, sabedoria e trabalho, tudo isso o prende alternadamente, e a vida parece por um instante feri-lo.  Então, seu próprio passado, seu próprio Karma, vem para ensiná-lo pela dor e pela renúncia a lição de "Neti" . Mais tarde virá o estágio em que "Guru é Brahmã , Guru é Vishnu, Guru é Mahadeva, sim, Guru é o próprio Brahman."  Mas a vida ensina-o ainda a murmurar "Neti , Neti", mesmo que ele deva tudo o que é ao seu Guru. Cada vez mais alto, ele vai de uma emanação para outra; "Neti , Neti" ele ainda murmura. No último estágio exceto um, mesmo diante do próprio Ishwara, e mesmo enquanto uno com o seu Senhor, ele ainda deve murmurar: "Neti , Neti"

Somente quando permanecermos sozinhos, totalmente despidas de todas as coisas de todos os planos, não contando com nada, nem mesmo com Deus, vislumbraremos a verdadeira natureza da Realidade.  Então, espontará pouco que Luz no Caminho conclua com essas três últimas regras para guiar aquele que está no umbral da divindade:


"Aferra-te ao que não tem substância nem existência.
Não ouças senão a voz que é insonosa.
Não olhes senão o que é invisível,
Tanto ao sentido interno como ao externo."

Enquanto existirem uns poucos nesta terra antiga que sussurrem "Neti , Neti", a vida indiana não mudará fundamentalmente.  E embora eles pareçam permanecer à parte do mundo, habitando nas ermidas florestas, ou nas cavernas das montanhas, eles dão uma unidade e coerência aos sonhos do mundo de paz e salvação.  Pois a salvação é de dentro; deve ser assim, pois o homem e Deus são um, não dois.  O caminho interior, onde termina o caminho exterior, que é "Neti , Neti"

Notas:
(*) Platão — “ O Banquete”

Fonte:
C. Jinarajadasa — “O Segrego das Idades e outros ensaios Teosóficos.”
Tradução de Elza Teixeira

sábado, 10 de setembro de 2011

A CORRENTE, J. Krishnamurti (Vida após a morte?)

Discussão entre J. Krishnamurti, Alain Naudé e Mary Zimbalist, em 4 de janeiro de 1972, no dia seguinte àquele em que Krishnamurti e Sidney Field, um velho amigo, se encontraram para falar da recente morte do irmão deste.

K - No outro dia, Sidney Field veio ver-me. Seu irmão John havia falecido recentemente. Ele desejava saber se o irmão vivia em outro nível de consciência; se havia uma entidade John que devesse nascer numa próxima vida; se eu acreditava em reencarnação e o que significava ela. Eram muitas as perguntas. Ele estava sofrendo porque amava o irmão. Dessa conversa surgiram duas coisas: primeira - haverá um ego permanente? Se há, então qual será sua relação com o presente e com o futuro - sendo o futuro uma próxima vida ou daqui a dez anos? Caso se admita, aceite ou afirme que há um ego permanente, então a reencarnação ...
N - ... é inevitável.
K - Não. Não diria que é inevitável, mas, possível, pois, para mim, o ego permanente (se é que é permanente) pode mudar no espaço de dez anos. Em dez anos, ele pode encarnar mudado.
N - Em todas as escrituras indianas lemos isso. Soubemos de casos de crianças que se lembram da vida passada; de uma garotinha que disse: "Que é que eu estou fazendo aqui? Minha casa fica em outra vila. Sou casada com Fulano. Tenho três filhos." Creio que muitos desses casos foram verificados.
K - Não sei. Portanto a coisa é essa. Se não há qualquer entidade permanente, o que é reencarnação? Ambas as coisas implicam tempo; ambas implicam movimento no espaço - espaço como meio-ambiente, relação, compulsão - tudo dentro do espaço-tempo.
N - No tempo e nas circunstâncias do tempo.
K - E isso significa cultura, etc.
N - Dentro de uma estrutura social.
K - Haverá, portanto, um eu permanente? Claro que não. Mas Sidney afirmou: "Então, por que é que eu sinto que John está comigo? Quando entro no quarto, sei que ele está lá. Eu não estou ficando doido. Não estou imaginando nada. Eu o sinto como sinto minha irmã que esteve ontem naquele quarto. isso é evidente.”
N - Por que diz "claro que não"? Pode explicar?
K - Espere aí. Ele disse: "Meu irmão está lá." Eu respondi: "Claro que sim. Antes de mais nada, porque o senhor projeta as associações e recordações que tem de John. Essa projeção é a sua própria memória.”
N - Nesse caso, trata-se do John que está dentro do senhor.
K - Isso mesmo. "Quando John vivia, estava associado ao senhor. Estava junto do senhor. Enquanto ele vivia, embora não o visse durante o dia todo, ele estava presente naquele quarto."
N - Estava presente lá. E talvez seja isso o que as pessoas querem dizer quando falam da aura.
K - Não. Aura é outra coisa. Não vamos falar disso agora.
Z - Posso interromper? Quando diz que ele estava naquele quarto, vivo ou morto, quer dizer que havia algo fora do seu irmão ou da sua irmã, ou estava na consciência deles?
K - Estava não só na consciência deles como fora também. Posso projetar meu irmão e dizer que ele esteve comigo na noite passada, sentir que ele estava comigo; isso pode provir de mim. A atmosfera de John, que morreu há dez dias, seus pensamentos, sua maneira de agir ainda permanecem lá, mesmo que, fisicamente, ele possa ter ido embora.
N - É a força psíquica.
K - É o calor físico.
Z - Está dizendo que existe uma espécie de energia, na falta de melhor palavra, que os seres humanos desprendem?
K - Tiraram uma fotografia de um estacionamento que estivera cheio de carros e, embora já não houvesse mais nenhum, a foto mostrava a forma dos carros que tinham estado.
N - É, eu vi isso.
K - Isso significa que o calor deixado pelos carros ficou no negativo.
N - Quando estivemos em Gstaad (na primeira vez em que fui seu hóspede em Gstaad, em Les Capris) e o senhor viajou, antes de nós, para a América, eu entrei no seu apartamento. O senhor já estava a caminho da América, mas sua presença lá era muito forte.
K - É isso aí.
N - Sua presença era tão forte, que tínhamos a impressão de poder tocá-lo. E não era simplesmente porque estivesse pensando no senhor antes de entrar.
K - Há, portanto, três possibilidades: projeção da minha lembrança e da minha consciência ou captação da energia residual de John.
N - Como um cheiro que permanece.
K - O pensamento de John ou a existência de John ainda está lá.
N - Essa é a terceira possibilidade.
Z - Que quer dizer com a existência de John?
N - Que John está realmente lá como antes de morrer.
K - Eu vivo num quarto durante anos. Nele ficam presentes minha energia, meus pensamentos e meus sentimentos.
N - Ele conserva aquela energia; é por isso que, quando vamos para uma nova casa, às vezes leva tempo até que fiquemos livres da pessoa que morava lá antes, embora não a tenhamos conhecido.
K - Aí estão, portanto, as três possibilidades. E a outra é o pensamento de John, pois John se apega à vida. Os desejos de John estão no ar; não, no quarto.
N - Imaterialmente.
K - Sim. Estão lá exatamente como um pensamento.
N - Significa isso que John está consciente, que há um ser auto-consciente que se chama John e que emite esses pensamentos?
K - Duvido.
N - Creio que é isso o que afirmariam as pessoas que acreditam na reencarnação.
K - Veja o que acontece, senhor. Isto cria uma quarta possibilidade: a idéia de que John, cujo corpo físico já se foi, existe em pensamento.
N - Em seu próprio pensamento ou no de outro?
K - Em seu próprio pensamento.
N - Existe como uma entidade pensante?
K - Como uma entidade pensante.
N - Como um ser consciente.
K - Ouça isto: é interessante. John continua porque ele é o mundo da mediocridade, da ambição, da inveja, da bebida, da competição. Esse é o padrão normal do homem. Esse padrão continua e John pode estar identificado com isso, ou é isso.
N - John é um conjunto de desejos, pensamentos, crenças, associações ...
K - Do mundo.
N - Que estão encarnados e que são materiais...
K - E isso é o mundo, isso é todo mundo.
N - É muito importante o que o senhor está dizendo. Seria bom se pudesse explicar um pouco mais. O senhor diz que John continua e que ele continua porque é a continuação do vulgar nele, isto é, uma ligação material e mundana.
K - Correto. É o medo, o desejo de poder, posição. É o que é comum no mundo. Ele é do mundo e é o mundo que encarna.
N - O senhor diz que o mundo encarna?
K - Considere a multidão. Estão todos agarrados a essa corrente e ela prossegue. Eu posso ter um filho que faz parte da corrente e preso a ela também está John. E meu filho pode ter algumas atitudes semelhantes às de John.
N - Ah! mas o senhor está dizendo coisa diferente.
K - Estou.
N - O senhor está dizendo que John se acha em todas as recordações que diversas pessoas têm dele. Nesse aspecto, vemos que ele realmente existe. Lembro-me de um amigo meu, não há muito falecido; era evidente para mim, quando pensava no fato, que ele permanecia bem vivo na lembrança de todos que gostavam dele.
K - Exatamente.
N - Portanto ele não estava ausente do mundo. Ele ainda se encontrava na corrente dos acontecimentos a que chamamos mundo, isto é, as pessoas que se haviam ligado a ele. Nesse sentido, talvez ele viva para sempre.
K - A menos que ele saia da corrente, se não for um homem vulgar - usando a palavra vulgar com o sentido de ambição, inveja, poder, posição, ódio, anseios e tudo mais. A menos que eu esteja liberto da vulgaridade, continuarei sendo vulgar, conservarei toda a vulgaridade humana.
N - Sim, serei essa vulgaridade se persistir nela, se nela encarnar, se lhe der vida.
K - Portanto, eu encarno na vulgaridade. Assim, eu posso, primeiro, projetar meu irmão John.
N - Nos meus pensamentos, na imaginação, na minha lembrança. O segundo ponto é este: posso captar sua energia cinética que está em volta.
K - Seu cheiro, suas inclinações, suas palavras.
N - O cachimbo não fumado sobre a escrivaninha, a carta inacabada.
K - Tudo isso.
N - As flores colhidas no jardim.
K - Em terceiro lugar, o pensamento que permanece no quarto.
N - O pensamento permanece no quarto?
K - As emoções.
N - Talvez que o equivalente psíquico da energia cinética.
K - Sim.
N - O pensamento dele permanece quase como um cheiro material, como um cheiro físico.
K - Correto.
N - A energia do pensamento permanece como um velho casaco pendurado.
K - O pensamento, o desejo. Se ele possuía vontade, desejos e pensamentos intensos, isso também permanece.
N - Mas isso não difere do terceiro ponto. O terceiro ponto é que o pensamento permanece, isto é, a vontade, o desejo.
K - O quarto ponto é a corrente da vulgaridade.
N - Mas isso não ficou bem claro.
K - Veja, senhor: eu vivo uma vida normal, como milhões de outras pessoas. Eu vivo a vida comum, um pouco mais refinada, mais ou menos elevada, dentro, porém, da mesma corrente. Eu sigo esse curso. Eu sou essa corrente. O eu, que é esse curso, continua na corrente, na corrente do eu. Não sou diferente de milhões de outras pessoas.
N - Então, o senhor está dizendo que, embora morto, eu continuo porque continuam as coisas que eu sou?
K - No ser humano.
N - Nesse caso, eu sobrevivo. Eu não era diferente das coisas que preenchiam minha vida e me preocupavam.
K - Isso mesmo.
N - Significa isso, então, que, por assim dizer, eu sobrevivo porque sobrevivem as coisas que preenchiam e ocupavam minha vida.
K - Certo. Esse é o quarto ponto.
N - A questão é o quinto. Haverá uma entidade pensante e consciente que sabe que está consciente quando todos dizem: "Lá se vai o pobre e velho John; nós o enterramos"? Haverá uma entidade consciente que, embora imaterialmente, diz: "Santo Deus! eles enterraram meu corpo, mas sei que estou vivo"?
K - Sim.
N - A essa pergunta é que eu acho difícil responder.
K - É o que Sidney perguntava.
N - Porque é claro que, dos outros vários modos, todos existem após a morte.
K - Agora o senhor pergunta: será que John, essa entidade cujo corpo foi cremado, continua a viver?
N - Será que essa entidade continua a ter consciência de que existe?
K - Eu pergunto se há um John separado.
N - No começo, o senhor disse: "Há um ego permanente?" E respondeu: "Claro que não."
K - Quando o senhor diz que meu irmão John morreu e pergunta se ele vive como urna consciência isolada, eu indago se ele, em algum momento, esteve desligado da corrente.
N - Sim.
K - Está acompanhando o que estou dizendo, senhor?
N - Havia um John vivo?
K - Enquanto John vivia, estava separado da corrente?
N - A corrente alimentava sua autoconsciência. Sua auto-consciência era a própria corrente a se conhecer.
K - Não, senhor, vamos devagar. É um tanto complicado. A corrente da humanidade é cólera, ódio, ciúme, busca de poder, posição, trapaça, corrupção, poluição. Essa é que é a corrente. Meu irmão John faz parte disso. Enquanto existia fisicamente, ele possuía um corpo físico, mas, psicologicamente, era isso. Em algum momento, portanto, estava separado da corrente? Ou estaria apenas fisicamente separado, crendo, por esse motivo, ser diferente? Compreende meu ponto?
N - Havia uma entidade auto-consciente.
K - Como John.
N - Ele tinha auto-consciência, mas fazia parte da corrente.
K - Sim.
N - Minha esposa, meu filho, meu amor.
K - Mas será que, interiormente, John estava desligado da corrente? Esse é o meu ponto de vista. Portanto o corpo dele é que está morto. John continua como parte da corrente. Na qualidade de seu irmão, gosto de considerá-lo diferente já que ele vivia comigo como um ser fisicamente separado. Interiormente, contudo, ele fazia parte da corrente. Por conseguinte, havia algum John realmente distinto da corrente? Se havia, o que acontece então?
N - Há uma corrente vista de fora e outra, de dentro. No momento de um ato vulgar, a vulgaridade é uma coisa distinta do homem que pratica o ato. Vemos essa vulgaridade por fora e dizemos que é um ato vulgar. Mas eu, que estou ofendendo alguém, vejo o ato de outra maneira. Eu estou consciente no momento em que ofendo. De fato, eu ofendo porque estou pensando conscientemente. Eu ofendo para me proteger.
K - O meu ponto de vista é que é isso que está acontecendo com milhões de pessoas. Enquanto estiver nadando nessa corrente, sou diferente dela? Será que o John real difere da corrente?
N - Será que alguma vez houve um John?
K - É exatamente esse o meu ponto.
N - John resultava de uma decisão consciente.
K - Sim. Eu posso inventar, imaginar que sou diferente.
N - Havia uma imagem, um pensamento que se denominava a si mesmo John.
K - Sim, senhor.
N - Mas será que esse pensamento ainda se autodenomina John?
K - Acontece que eu pertenço a essa corrente.
N - Nós sempre pertencemos à corrente.
K - Não existe uma entidade separada como John, que era meu irmão e que, agora, está morto.
N - Está afirmando que não havia nenhum indivíduo?
K - Não. A isso é que chamamos permanente. O ego permanente é isso.
N - Que pensamos ser individual?
K - Individual, coletivo, o eu.
N - Sim, a criação do pensamento que se considera o eu.
K - Pertence a essa corrente. Portanto, será que alguma vez houve um John? Só existe um John quando ele está fora da corrente.
N - Certo.
K - Desse modo, estamos tentando descobrir, primeiro, se há um ego permanente que encarne.
N - O ego, por natureza, é impermanente.
K - Toda a Ásia aceita a reencarnação e as pessoas que, atualmente, acreditam nela afirmam que há um eu permanente. Levamos muitas vidas até que ele se dissolva e se absorva em Brahma e tudo mais. Haverá, contudo, uma entidade permanente - uma entidade que dure séculos? É claro que não existe essa entidade permanente. Eu gosto de pensar que sou permanente. Eu identifico minha permanência com meus móveis, minha esposa, meu marido, as circunstâncias. Mas isso são apenas palavras e imagens do pensamento. De fato, eu não possuo esta cadeira. Eu digo que ela é minha.
N - Exatamente. Pensamos que possuímos a cadeira.
K - Gosto de pensar que a possuo.
N - Mas é tão-somente uma idéia.
K - Portanto, veja: não há um eu permanente. Se houvesse, ele seria a própria corrente. Percebendo, porém, que sou como o resto do mundo, que não há nenhum K separado, nem John, como meu irmão, então, se saio da corrente, posso encarnar. Posso encarnar no sentido de que a mudança ocorre fora da corrente. Na corrente não há mudança.
N - Se há permanência, ela se dá fora da corrente.
K - Não, senhor; a permanência e a semi-permanência são a corrente.
N - Nesse caso, não é permanente. O que é permanente não faz parte da corrente. Por conseguinte, se há uma entidade, tem de estar fora da corrente. Portanto, o verdadeiro, o permanente, não é uma coisa.
K - Não está na corrente. Quando Naudé faz parte da corrente e morre, a corrente, com seu fluxo, é semi-permanente. Mas se Naudé disser: "Vou sair da corrente, não na próxima vida, mas, agora" - então ele já não fará parte dela e, desse modo, nada há de permanente.
N - Não há coisa alguma para reencarnar. Portanto, o que reencarna, se é que é possível a reencarnação, não é, em absoluto, o permanente.
K - Não. É a corrente.
N - É demasiado terra-a-terra.
K - Não coloque a coisa dessa maneira.
N - Uma entidade separada não é real.
K - Não - enquanto fizer parte da corrente.
N - Eu, de fato, não existo.
K - Não há entidade isolada. Eu sou o mundo. Quando saio do mundo, há algum eu que continue?
N - Exatamente. Magnífico!
K - Portanto, o que estamos tentando fazer é justificar a existência da corrente.
N - É o que estamos fazendo?
K - Claro; é o que fazemos quando afirmamos que devemos ter muitas vidas e que, por isso, devemos continuar na corrente.
N - O que estamos tentando é demonstrar que somos diferentes da corrente.
K - Mas não somos.
N - Não somos diferentes da corrente.
K - Isso mesmo, senhor. E o que acontece? Se não há nenhum John permanente nem K nem Naudé nem Zimbalist, o que é que acontece? O senhor deve lembrar-se: creio que li, na tradição tibetana ou qualquer outra, que, quando uma pessoa está morrendo, o sacerdote ou o monge entra no quarto, manda toda a família sair, fecha a porta e diz ao moribundo: "Olhe! Você está morrendo. Largue todos os seus antagonismos, experiências mundanas, ambições. Livre-se de tudo isso porque você vai ao encontro de uma luz na qual mergulhará se estiver livre. Do contrário, voltará, voltará à corrente. Estará, outra vez, na corrente."
N - Sim.
K - Portanto, o que acontece quando saímos da corrente?
N - Quando saímos da corrente, deixamos de existir. Mas o que existia tinha sido criado pelo pensamento ...
K - Que é a corrente.
N - A vulgaridade.
K - A vulgaridade. E o que lhe acontece se sair da corrente? Essa saída é a encarnação. Sim, senhor. Mas isso é algo novo em que penetra. É uma nova dimensão que surge.
N - Sim.
K - E, então, o que acontece? Está seguindo? Naudé saiu da corrente. O que acontece? Já não é mais o artista nem o homem de negócio. Já não é mais político nem músico. Todas essas identificações fazem parte da corrente.
N - Todos os atributos.
K - Todos os atributos. Quando nos desembaraçamos de tudo isso, que acontece?
N - Não temos identidade alguma.
K - Aqui é que está a identidade - Napoleão, por exemplo, ou qualquer outro dito líder mundial. Eles mataram, trucidaram. Praticaram todos os horrores imagináveis. Viveram e morreram na corrente. Tudo isso é muito simples e claro. Mas, de repente, há um homem que sai da corrente.
N - Antes da morte física?
K - Evidente. Do contrário, não teria graça.
N - Então surge outra dimensão.
K - E o que acontece?
N - Ao fim de uma dimensão conhecida começa uma nova dimensão; mas não podemos comprová-la uma vez que toda comprovação se fará nos termos da dimensão em que nos encontramos.
K - Sim. Mas suponha que, agora, enquanto vive, saia da corrente. Que acontece?
N - Isso é a morte, senhor.
K - Não, senhor.
N - É a morte; mas, não, a morte física.
K - Veja: o senhor sai da corrente. Que acontece?
N - Nada se pode dizer sobre o que acontece.
K - Um momento, senhor. Veja: nenhum de nós sai do rio e é no rio que estamos sempre tentando alcançar a outra margem.
N - É como, na insônia, falar do sono profundo.
K - Isso mesmo, senhor. Nós somos parte da corrente - todos nós. Fazendo parte da corrente e sem jamais sair do rio, o homem deseja alcançar a outra margem. Então, o homem diz: "Muito bem; percebo esse engano, o absurdo de minha atitude."
N - Na velha dimensão não se pode falar da outra.
K - Então, eu saio dela. A mente diz: "Fora!" Ele sai e o que sucede? Não verbalize.
N - Dentro da corrente, a única coisa que cabe, em relação a isso, é o silêncio, pois é o silêncio da corrente. E podemos também dizer que é a morte da corrente. A isso, na expressão da corrente, muitas vezes se chama esquecimento.
K - Sabe o que significa sair da corrente? Não possuir mais um caráter, um modo de ser.
N - Não ter mais memória.
K - Não, senhor, veja: é não ter mais um modo de ser, uma vez que possuir um caráter ainda é coisa da corrente. No momento em que nos consideramos virtuosos ou não virtuosos, ainda fazemos parte da corrente. Sair da corrente implica sair de toda essa estrutura. Portanto, a criação, como entendemos, ainda está na corrente. Mozart, Beethoven, os pintores, todos eles se encontram nela.
N - Às vezes me parece, senhor, que o que está na corrente é como que animado por algo que está além.
K - Não, não, não pode ser. Não diga isso, pois, dentro da corrente, eu posso criar. Posso pintar quadros maravilhosos. Por que não? Posso compor as mais extraordinárias sinfonias; possuir toda a técnica.
N - Por que, então, são coisas extraordinárias?
K - Porque o mundo precisa disso. Há necessidade, há procura e há o preenchimento. Eu me pergunto o que sucede ao homem que realmente sai. Dentro do rio, a energia está em conflito, em contradição, em luta, na vulgaridade. E isso acontece o tempo todo.
N - Eu e você.
K - É. O tempo todo. Quando ele sai da corrente, não há mais divisões tais como meu país e seu país.
N - Nenhuma divisão.
K - Nenhuma divisão. Portanto, que espécie de homem, que espécie de mente é essa que já não divide mais? É energia pura, não? Desse modo, o que nos interessa é a corrente e sair dela.
N - Isso é meditação. Essa é a meditação real, pois a corrente não é a vida. A corrente é inteiramente mecânica.
K - Devo morrer para a corrente.
N - A todo momento.
K - A todo momento. Por isso tenho de rejeitar John, que está na corrente; não devo ficar preso a ele.
N - Precisamos repudiar tudo que é da corrente.
K - Significa isso que tenho de rejeitar meu irmão. Vejo que ele é parte da corrente e, no momento em que me afasto dela, minha mente se abre. Creio que isso é compaixão.
N - Quando se olha a corrente fora dela.
K - Quando o homem sai da corrente e olha para ela, sente compaixão.
N - E amor.
K - Vê, portanto, senhor, que a reencarnação, encarnar repetidamente, é coisa da corrente. Isso não serve para consolar ninguém. Eu comunico ao senhor que meu irmão morreu ontem e o senhor me diz tudo isso. Vou considerá-lo um homem extremamente cruel. Mas o senhor está lamentando por si mesmo; está lamentando por mim e pela corrente. E por isso que as pessoas não querem saber. Quero saber onde está meu irmão; não, se ele está.



Boletim 57 (1988) da Krishnamurti Foundation of America
Carta de Notícias no 256 - julho-dezembro/1988
Trad.: Vanfredo. Rio, 1988


SERMÃO DE BENARES, Buda (A Luz da Ásia)


E o Buddha assim falou: "Om, Amitaya! Não tenteis medir com palavras o Incomensurável, nem pretendais aprofundar a sonda do pensamento no Impenetrável. Aquele que interroga erra, o que responde também erra. Nada dizei!


"Os Livros ensinam que as Trevas existiam antes de todas as coisas e Brahma meditava só, na Noite. Não procureis aí por Brahma nem pela Origem! Nem ele nem nenhuma luz pode ser vista com olhos mortais, nem conhecida com o auxílio da mente mortal; um após outro se erguerão os véus, porém haverá véus sob véus atrás dos primeiros. As estrelas seguem seu curso e não perguntam. É suficiente que a vida e a morte, a alegria e a dor permaneçam, assim como a causa e o efeito, e o curso do tempo, e a maré incessante da Existência que, sempre mudando, corre sem interrupção, como um rio, cujas ondas se sucedem lentas ou rápidas, as mesmas, embora diferentes, desde sua longínqua fonte até o mar, onde vertem.

"O mar, evaporando-se ao Sol, restitui ao rio suas pequenas ondas perdidas, sob a forma de ligeiras nuvens que gotejarão do alto das montanhas e correrão de novo sem trégua nem repouso. Isto basta para compreender as aparências existentes; os Céus, Terras, Mundos e as mudanças que os modificam, são uma roda poderosa que gira, movida pela luta e resistência, sem que ninguém possa detê-la nem ir em sentido inverso do seu movimento. Não supliqueis! Não se iluminarão as Trevas! Nada peçais ao Silêncio, pois ele não pode falar! Não atormenteis com piedosos sofrimentos vossos espíritos aflitos!

"Ah! Irmãos, Irmãs, não espereis nada dos deuses implacáveis, oferecendo-lhes hinos e dádivas; não pretendais conquistá-los com sacrifícios sangrentos; não os alimenteis com frutos e bolos; a liberdade deve ser buscada dentro de vos mesmos. Cada homem cria sua prisão; cada um tem tanto poder como os mais poderosos; porque para todas as Potências, que estão em cima, ao redor e abaixo de nós, como para as criaturas de carne e tudo o que vive, o ato é que faz a alegria e o sofrimento.

"O que foi traz o que deve ser, e é, pior ou melhor; os Anjos nos Céus Bem-aventurados recolhem os frutos do seu passado santo; os demônios nos submundos devem esgotar as ações más que em épocas passadas cometeram. Nada perdura; as belas virtudes se desgastam com o tempo, assim como os pecados repugnantes se purificam. Aquele que penou como escravo pode voltar mais tarde como Príncipe, graças às suas virtudes benéficas e aos méritos que adquiriu; aquele que governou um Reino pode vagar sobre a terra esfarrapado, por causa das coisas que fez e das que deixou de fazer. Podeis elevar vosso destino acima do de Indra e faze-lo descer abaixo dos vermes da terra ou do mosquito; o fim de miríades de existências é este, e de outras miríades, aquele. Mas enquanto gira a roda Invisível, não há paz nem trégua nem descanso; aquele que sobe pode cair e o que cai pode subir, pois os raios giram incessantemente.

"Se estivésseis sujeitos à roda da transformação sem que houvesse meio de romperdes as vossas cadeias, o Coração do Ser Infinito seria uma maldição, e a Alma das Coisas uma Dor cruel. Porém, não estais presos! A Alma das Coisas é suave; o Coração do Ser é paz celestial; a vontade é mais forte que a dor; o que era Bom se torna Melhor e depois Excelente. Eu, Buddha, que chorei com todas as lágrimas dos meus irmãos, eu, cujo coração se partiu de dor pelos sofrimentos do mundo inteiro, rio agora e sou feliz porque aqui está a Liberdade! Oh! Vós que sofreis, sabei que sofreis por causa de vós mesmos. Nenhum outro vos compele ou vos retém para fazer-vos viver e morrer, fazendo-vos girar na roda da vida, e abraçar e beijar seus raios de agonia, seu aro de lágrimas e seu cubo de nada! Escutai! Eu vos mostro a Verdade!

“Mais baixo que o Inferno e mais alto que o Céu, além das estrelas mais longínquas, mais além de Brahma ele permanece. Antes do início e sem um fim, eterno como o espaço e seguro como a certeza, há uma Potência divina estável que se move para o bem; apenas suas leis perduram. É seu toque que faz florescer as rosas, é ele que fabrica as folhas dos lótus; no solo escuro e no silêncio das sementes é ele quem tece a roupagem da Primavera; eis seu colorido nas nuvens gloriosas e suas esmeraldas na cauda do pavão real; as estrelas são suas moradas; a luz, o vento e a chuva são seus escravos; ele faz sair das trevas o coração humano, e do ovo escuro o faisão de pescoço desenhado; sempre trabalhando ele torna atraente aquilo que antes era cólera e destruição.

"Os ovos cinzentos no ninho do colibri dourado são seus tesouros; as celas hexagonais das abelhas são seus potes de mel; a formiga segue seus caminhos, e a pomba branca os conhece perfeitamente. Ele abre as asas da águia que carrega para casa sua presa; faz regressar a loba para perto dos seus lobinhos; encontra alimento e amigos para os seres que ninguém ama. Nada lhe repugna nem o detém; ama tudo; faz brotar o doce leite do seio das mães; faz fluir também as gotas brancas que distilam dos dentes das jovens serpentes. Regula a harmonia dos globos em marcha para a abóbada infinita do céu; oculta nos profundos abismos da terra o ouro, os sárdios, as safiras e os lápis-lazúlis. Elaborando sem cessar seus mistérios, se oculta nos verdes claros das selvas e alimenta plantas estranhas ao pé dos cedros, ideando folhas, flores e hastes; mata e salva sem outro fim que realizar o Destino; seus fios são o Amor e a Vida; a Morte e a Dor são as lançadeiras do seu tear. Faz e desfaz corrigindo tudo; o que foi trabalhado agora é melhor que o que existia antes; sob suas mão hábeis se aperfeiçoa lentamente o esplêndido modelo que projetou.

"Tal é a sua ação sobre as coisas que vedes; porém, as coisas invisíveis têm mais importância; os corações e mentes dos homens, os pensamentos dos povos, seus caminhos e suas vontades também estão submetidos à grande Lei. Invisível, vos socorre com suas mãos benéficas; não é ouvido e, entretanto, fala mais forte que a tempestade. A Piedade e o Amor são a herança do homem, porque um longo esforço modelou a massa cega, dando-lhe forma. Ninguém pode menosprezá-lo; quem lhe desobedece perde e quem o serve ganha; retribui o bem oculto com paz e a felicidade e o mal disfarçado pelos sofrimentos. Vê em todos os lugares e tudo percebe; sede corretos e ele vos recompensará; porém, se fordes injustos ele vos dará a retribuição igual, mesmo que o Dharma demore a manifestar-se. Não conhece nem a cólera nem o perdão; suas medidas são de uma precisão absoluta e sua balança infalível; o tempo não existe para ele, julgará amanhã ou muito tempo depois. Graças a ele, o assassino se fere com sua própria arma; o julgador injusto perde seu defensor, a língua falsa condena sua mentira; o ladrão furtivo e o espoliador rouba para restituir. Tal é a Lei que se move para a justiça, que ninguém pode evitar ou deter; seu coração é o Amor e seu fim a Paz e a Perfeição última! Obedecei!

"Os livros dizem a verdade, meus irmãos; a vida de cada homem é o resultado das suas existências anteriores; os erros passados trazem desgostos e sofrimentos, e o bem passado traz consigo a felicidade e a paz. Colheis o que semeastes. Vede este campo! O sésamo era sésamo e o trigo sempre foi trigo. O Silêncio e a Escuridão o sabem! Assim nasce o destino do homem! Ele vem, colhendo as coisas que plantou, sésamo, trigo, o que tenha semeado em existência anterior; e colhe tantas ervas más e venenosas que causam sua ruína e da terra dolorida. Se trabalhar corretamente, arrancando-as e plantando em seu lugar sementes benéficas, o solo será fecundo, formoso e puro e a colheita será rica. Se aquele que vive, aprendendo de onde surge a dor, a suporta pacientemente, esforçando-se por pagar até a mais remota dívida contraída pelas antigas faltas, sempre no Amor e na Verdade. Se, sem causar mal a ninguém, purga completamente da mentira e da sensualidade do egoísmo seu sangue, sofrendo com toda mansidão e não devolvendo senão o bem e o perdão pelas ofensas recebidas. Se, a cada dia se torna mais compassivo, santo, justo, amável e sincero, e arranca o desejo de todos os lugares onde ele se implanta, com raízes sangrentas, até que o amor da vida termine; então ele, morrendo, deixará como um somatório de si, uma conta encerrada, cujos males estão pagos e mortos, e cujo bem está vivo e poderoso, desde os mais recentes aos mais afastados, de tal maneira que os frutos se seguem.

"Um homem tal não tem necessidade de viver aquilo que chamamos vida; aquilo que começou nele quando ele começou está terminado: realizou o propósito pelo qual ele se fez Homem. Já não padecerá tormentos, os pecados já não o mancharão; os sofrimentos das alegrias e dores terrenas já não perturbarão sua paz eterna e as mortes e existências não recomeçarão mais para ele. Entra no Nirvana. Está unido com a Vida e, entretanto, não vive; é bem-aventurado porque cessou de ser. OM, MANI PADME HUM! (Om, a Jóia do Lótus). A Gota de Orvalho se perde no mar resplandecente!

Tal é a doutrina do Karma! Aprendei! Só quando desaparecem todas as escórias do pecado, só quando a vida morrer como uma chama clara extinta, a morte morrerá completamente com ela. Não digais: "Eu sou", "fui" ou "serei". Não penseis que passais de uma habitação de carne a outra como viajantes que recordam e esquecem que estiveram bem ou mal alojados. A soma das existências anteriores, que constitui a última, volta novamente ao Universo. Ele constrói sua morada como o bicho da seda tece o casulo que o encerra. Toma sua substância e suas funções, como o ovo da serpente durante a incubação, forma suas escamas e seus anéis; como as sementes dos empenachados arbustos voam por cima das rochas, das terras não férteis e dos areais, até que encontrem o pântano propício e se multipliquem. O mesmo acontece para ajudar ou ferir. Quando a Morte fere o assassino cruel, seus fragmentos impuros e ensangüentados vagam levados por ventos brumosos e pestilenciais. Porém, quando morre o homem bom e justo, sopram suaves brisas; o mundo se torna mais enriquecido, como um rio do deserto que desaparece repentinamente para reaparecer em seguida brilhando mais puro, com um brilho mais abrangente. Assim o mérito adquirido faz alcançar uma era mais venturosa, que está mais distante do demérito; entretanto, é preciso que esta Lei de Amor reine Soberanamente sobre o mundo inteiro antes que os Kalpas terminem.

"Qual é o obstáculo? Irmãos meus! A Obscuridade que a ignorância espalha, é aquilo que vos extravia e vos faz tomar as aparências como realidades, e sede de possuir, e, possuindo, ficares presos à sensualidade, que causa vossas dores. Vós que quereis seguir o Caminho do Meio, traçado pela Razão Brilhante e aplanado pela doce Quietude; vós que quereis conhecer o Caminho elevado do Nirvana, escutai as Quatro Nobres Verdades:

"A Primeira Verdade é a da Dor! Não vos deixeis enganar! A vida que amais é uma longa agonia; só permanecem suas aflições, pois seus prazeres são como pássaros que pousam e voam. Sofrimentos do nascimento, sofrimentos dos dias desamparados, sofrimentos da ardente juventude e sofrimentos da idade madura; sofrimentos dos frios e sombrios anos da velhice, e, finalmente, os sofrimentos da morte; eis aí o que preenche vossa lastimosa existência. O Amor é uma coisa doce, porém as chamas fúnebres deverão beijar os seios sobre os quais descansais e os lábios aos quais agora unis os vossos. Valorosa é a Virtude guerreira, porém os abutres dilaceram os membros do chefe e do Rei. A Terra é magnífica, porém todos os hóspedes das suas selvas conspiram para seu assassínio mútuo, em sua sede de viver; os céus são de safira, porém aos homens famintos, por mais que chorem, não deixam cair uma só gota d'água. Perguntai aos enfermos, aos aflitos, aos mancos apoiados em seus bastões, solitários e abandonados: "Amais a vida?" E vos dirão que a criança é sábia por chorar ao nascer.

"A Segunda Verdade é a Causa da Dor. Que sofrimento surge por si mesmo e não do Desejo? Os sentidos e os objetos percebidos se encontram e acendem a viva chispa das paixões: assim se inflamaTrishna, a sensualidade e a sede das coisas. Avidamente vos afeiçoais às sombras e vos iludis com sonhos; plantais um falso Eu no centro e estabeleceis ao seu redor um mundo de aparências; estais cegos para as alturas mais além, surdos para o som das brisas suaves que vêm de mais alto que o céu de Indra; mudos para os reclames da verdadeira vida conservada para vós e que a falsidade desviou. Assim crescem as lutas e a sensualidade que fazem reinar a guerra no mundo; assim sofrem os pobres corações enganados e correm as lágrimas salgadas; assim vêm à existência as paixões, as invejas, as iras e os ódios; assim anos seguem anos maculados de sangue, com ferozes pés vermelhos. Por isso, onde deveria brotar o trigo se estende a erva daninha com suas malignas raízes e flores venenosas; com dificuldade as boas sementes encontrarão solo propício onde possam cair e brotar. E a alma se vai, narcotizada com bebidas venenosas; e com impetuoso desejo de embriagar-se, o Karma retorna; excitado pelos sentidos, o eu fogoso começa de novo a colheita de novas desilusões.

"A Terceira Verdade é a Cessação da Dor. Tal paz conquista o amor do eu e o apego à vida, arranca do peito a paixão profundamente enraizada e acalma a luta interior, pelo amor de abraçar a Eterna Beleza; pela glória de ser Senhor do eu; pelo prazer de viver além dos deuses; pela riqueza infinita de armazenar tesouros duradouros pelos perfeitos serviços prestados, deveres feitos com caridade, palavras suaves e vida sem mácula; não se perderão essas riquezas no curso da existência e nenhuma morte as diminuirá. Então finda a Dor, porque cessarão a Vida e a Morte. Como pode iluminar a lâmpada cujo azeite se consumiu? A triste velha conta carregada de dívidas está liquidada e a nova está limpa; assim o homem atinge a felicidade.

"A Quarta Verdade é A Senda. Está amplamente aberta, acessível a todos os pés, simples e perto; oNobre Caminho Óctuplo, que vai retamente à paz e ao refúgio. Escutai! Numerosas trilhas conduzem a esses picos gêmeos cobertos de neve, em torno dos quais se mesclam as nuvens douradas; subindo pelos aclives suaves ou escarpados o alpinista chega aos cumes onde surge aquele outro mundo. Os que têm membros vigorosos podem afrontar o caminho reto e perigoso que vai diretamente pelo flanco da montanha; os débeis são obrigados a rodeios que percorrem caminhos mais longos, descansando em muitos lugares. Tal é o Caminho Óctuplo que conduz à paz; caminha por alturas mais ou menos abruptas. A alma firme se apressa e a alma débil se atrasa, mas todas alcançarão as neves banhadas de sol.

"O primeiro estágio bom é a Doutrina Reta. Caminhe respeitando o Dharma, evitando todas as ofensas; cautelosamente em relação ao Karma, que produz o destino do homem; dominando os sentidos. Osegundo é o Propósito Reto. Ter boa vontade para com tudo que vive, deixando que a indelicadeza, a avidez e a cólera morram; de modo que suas vidas sejam como suaves aragens que passam. O terceiro é oDiscurso Reto. Governe vossos lábios como se fossem as portas de um palácio com um Rei interior; que todas as vossas palavras sejam palavras tranqüilas, justas e corteses, que daquela presença prevalece. O quarto é a Conduta Reta. Que cada uma de vossas ações ataque uma falta ou ajude a acrescentar um mérito; como se vê o fio de prata através das contas de cristal de um colar, deixai que o amor apareça através das vossas boas ações.

"Há quatro rotas mais elevadas. Porém, só podem seguí-las os pés que terminaram com as coisas terrestres; são a Pureza Reta, o Pensamento Reto, a Solidão Reta e o Êxtase Reto. Não pretendais voar para o sol, ó alma cujas asas ainda não têm penas! O ar das regiões inferiores é suave e seguro, e são conhecidos os estágios simples! Somente os seres vigorosos podem abandonar o ninho que cada um para si constrói. O amor da Mulher e da Criança são preciosos, eu o sei; a amizade e as diversões da vida são agradáveis; as caridades amáveis de uma Vida virtuosa são frutíferas; seus temores, ainda que falsos, estão ancorados solidamente. Vivei assim tais vidas, vós que estais ainda presos às afeições terrenas, como os mais fortes viverão a deles; fazei da vossa debilidade uma escada de ouro; elevai-vos pela prática diária dessas fantasias para as verdades mais dignas de serem amadas. Assim chegareis a alturas mais claras, e achareis subidas mais fáceis e mais leve o fardo das vossas culpas, e adquirireis uma vontade mais firme para arrebentar os laços dos sentidos, entrando no Caminho.

"Aquele que começa desse modo, alcança o Primeiro Estágio; ele conhece as Nobres Verdades e o Caminho Óctuplo; cedo ou tarde alcançará a morada bendita do Nirvana. Aquele que chega ao Segundo Estágio, emancipado das dúvidas, das ilusões e da luta interna, senhor de toda a sensualidade e liberto dos sacerdotes e dos livros, não terá que viver senão uma existência. Um pouco além se acha o Terceiro Estágio; ali o altivo espírito se torna puro e se eleva ao amor de todos os seres em perfeita paz. Terminada a vida, está destruído seu cárcere. Porém há alguns que certamente passam vivos e visíveis para a meta suprema, por meio do Quarto Estágio, o dos Santos - os Buddhas, de almas imaculadas.

Vede! Como inimigos cruéis mortos por algum guerreiro, as Dez Transgressões jazem no pó ao longo desses Estágios. O Amor pelo Eu, a Falsa Fé, a Dúvida, o Ódio e a Sensualidade são cinco, e aquele que venceu essas cinco transgressões franqueou três dos quatro estágios; porém restam ainda o Amor à Vida na terra, o Desejo pelo Céu, o Amor Próprio, o Erro e o Orgulho. Como aquele que permanece nestas alturas nevadas só tem por cima de si o azul infinito, assim o homem, quando matou estes últimos pecados, chegou à margem do Nirvana.

"Os Deuses, colocados abaixo dele, o invejam; a ruína dos Três Mundos não o alteraria; para ele todas as vidas estão vividas, todas as mortes estão mortas; o Karma não lhe construirá novas moradas. Não buscando nada, ele possui tudo; desaparecendo o self, o Universo se torna o “EU”: se alguém ensinar que oNirvana é a cessação, dizei-lhe que mente. Se alguém ensinar que o Nirvana é viver, dizei-lhe que erram, porque nada sabem a esse respeito; ignoram que luz brilha além de suas lâmpadas quebradas, e desconhecem a bem-aventurança fora da vida e do tempo. Entrai no Caminho! Não há pior dor que o Ódio, nem sofrimento como o da paixão, nem engano como o dos sentidos! Entrai no Caminho! Já está muito avançado aquele que esmaga com os pés sua ofensa preferida. Entrai no Caminho! Ali manam as fontes curadoras que aplacam qualquer sede; ali florescem as imortais flores que atapetam alegremente todos os caminhos! Ali amontoam-se as horas mais vívidas e mais doces!

"O tesouro da Lei é mais precioso que as jóias e sua doçura é superior à do mel; suas delícias ultrapassam qualquer comparação. Para viver assim, escutai bem as Cinco Regras: Não mateis, por Compaixão, e não detende em seu caminho ascendente o mais ínfimo ser. Dai e recebei livremente, mas não tomeis de ninguém seus bens por avidez, força ou fraude. Não levanteis falsos testemunhos, não calunieis, não mintas; a Verdade é a expressão da pureza interior. Evitai as drogas e as bebidas que perturbam a inteligência; mentes claras, corpos claros não necessitam do suco do Soma. Não toqueis na mulher do vosso vizinho e não cometais pecados carnais ilegais e impróprios.

Depois falou o Mestre dos deveres para com os pais, os filhos, os companheiros, os amigos; ensinando como os que não podem quebrar rapidamente as aprisionantes cadeias dos sentidos, cujos pés são muito débeis para escalar o caminho mais árduo, devem organizar sua vida na carne de modo que todos os dias aqui transcorram sem mácula na realização de obras caritativas; e que intentem seus primeiros passos mal seguros no Caminho Óctuplo. Que vivam puros, reverentes, pacientes, compassivos; que amem todos os seres viventes como a si próprios; pois aquilo que é atraído pelo mal é o resultado do mal cometido no passado, e o que é bom provém do bem anterior. Digo que, agindo deste modo, o homem se purifica do Eu e ajuda o mundo; e assim bem mais feliz ele chega ao próximo estágio como um ser muito melhorado.

Depois narrou o seguinte: muito tempo antes, quando Nosso Senhor passeava perto de Rajagriha, no bosque de bambus, certo dia, ao despontar da aurora, viu o chefe de família Singala, que, depois de se haver banhado, curvava-se reverenciando com a cabeça descoberta, a terra, o céu e os quatro pontos cardeais, lançando com ambas as mãos arroz branco e vermelho. "Por que te curvas assim, meu irmão?" - perguntou o Mestre. "É a regra, Senhor! - respondeu ele - Nossos pais nos ensinaram que a cada aurora, antes de pôr-nos a trabalhar, temos que conjurar o mal que vem do céu que nos cobre, da terra que está sob nossos pés e de todos os ventos que sopram." Então, Aquele honrado pelo Mundo disse: "Não desperdices arroz, mas oferece a todos pensamentos e atos amorosos; a teus pais, olhando para o Oriente, donde vem a luz; a teus mestres, voltando-te para o Sul, donde vêm ricos presentes; à esposa e filhos, voltando-te para o poente, onde brilham amorosas e pacíficas cores, e onde terminam todos os dias; a teus amigos, parentes e a todos os homens, olhando para o Norte; aos seres mais humildes, inclinando-te; aos Santos, Anjos e Mortos bem-aventurados, voltando-se para cima. Assim se evitarão todos os males e também as seis direções principais serão mantidas seguras."

Porém, aos seus, aos revestidos com a túnica amarela, os que, como águias despertas, elevam-se com desdém pela vida no vale abaixo, e voam rumo ao sol, a estes ele ensinou as Dez Observâncias, o Dasa-Sil, e como um asceta deve conhecer as Três Portas e os Tríplices Pensamentos, os Sêxtuplos Estados da Mente, osQuíntuplos Poderes, as Oito Elevadas Portas da Pureza, os Modos de Entendimento; Sidhhi; Upeksha; as Cinco Grandes Meditações, que são um alimento mais doce que Amrita para as almas santas; os Dianas e osTrês Principais Refúgios; ensinou também aos seus como devem ser suas moradias, como devem viver livres dos laços do amor e das riquezas, o que devem comer, beber e portar; o uso de três panos simples e amplos, de um tecido de cor amarela e costurado de modo a deixar descoberto o ombro; um cinto, uma tigela de esmolas e um coador. Estabeleceu também as sólidas bases da nossa Sangha, esta nobre Ordem do Traje Amarelo, que existe ainda hoje para ajudar o mundo.

Falou assim toda a noite, ensinando a Lei e ninguém adormeceu, porque todos os que o escutavam se regozijavam com uma alegria infatigável. O próprio Rei, seu pai, quando terminou o sermão, levantou-se do seu trono e, com os pés descalços, inclinou-se profundamente diante de seu Filho, beijou a orla da sua túnica e lhe disse: "Aceita-me, meu filho, como o mais humilde e o último dos teus Companheiros." E a doce Yasodhara, sua esposa, então completamente feliz, exclamou: "Bem-aventurado! Dá como herança a teu filho Rahula o Tesouro do Reino da tua Palavra." E desta maneira entraram no Caminho estas três pessoas.

Aqui termina o que escrevi, eu que amo o Mestre por causa do seu amor por nós. Sabendo pouco, disse poucas coisas sobre o Senhor e os Caminhos da Paz. Durante quarenta e cinco anos contínuos, pregou essas Sendas em diversos países e em muitas línguas e deu à nossa Ásia esta luz que ainda é bela, conquistando o mundo com espírito de poderosa graça: tudo isto está escrito nos Livros santos, assim como os lugares onde passou e que os orgulhosos imperadores gravaram suas doces palavras nas rochas e cavernas, e como - quando se cumpriram os tempos - o Buddha, o grande Tathagata, morreu como um homem no meio dos homens, havendo terminado sua obra; e como milhares e milhares de pessoas seguiram depois o Caminho que conduz para onde ele próprio chegou, ao Nirvana, onde mora o Silêncio.

A LUZ DA ÁSIA, Livro VIII, Edwin Arnold